Nossa pirataria de cada dia – O Globo
A pirataria parece ter se enraizado de vez nos
hábitos do brasileiro. Depois que comprar DVDs copiados e baixar música grátis
na internet se tornou algo que pouca gente tem vergonha de esconder, nos
últimos anos a moda atingiu o mundo dos livros. Com a chegada das plataformas
digitais e de sites como Scribd ou Wattpad, praticamente todos os livros
publicados passaram a ter sua cópia pirata disponível para leitura e download
na internet.
Meses atrás, em discussão entre colegas
escritores, a maioria estava indignada com os milhares de downloads que seus
livros tinham recebido em poucos meses. Na época, para evitar o estresse,
preferi nem buscar o número dos meus. Parecia-me uma guerra inútil no
território novo do mundo digital. Melhor seguir escrevendo. Até que,
recentemente, nas redes sociais, um jovem me procurou pedindo o PDF do meu
último livro. Neguei com educação, pensando ser um caso isolado. Dias depois,
outro jovem com o mesmo pedido. E mais outro. E mais outro, que resolveu
discutir: explicou que estava sem dinheiro e que era egoísmo de minha parte não
querer disseminar cultura por aí. Basicamente, ele fazia um “favor” por estar
interessado no meu trabalho.
Pior, aquelas pessoas não faziam ideia de que,
ao baixar uma música ou solicitar o PDF de um livro, praticavam uma
ilegalidade. Não se davam conta de que estavam driblando a legislação e
prejudicando toda a cadeia produtiva do produto. Em suma, não percebiam a
dimensão do problema. É um assunto que me incomoda desde a época da faculdade
de direito na Uerj. Após as aulas na universidade sobre questões como
legalidade e justiça, o professor indicava aos alunos que, em uma pasta com seu
nome, havia textos e capítulos inteiros para serem fotocopiados. Sempre me
pareceu haver algo de errado aí.
Quando estava no quinto ou sexto período, uma
situação curiosa ocorreu: o professor deixou na xerox alguns capítulos de um
livro escrito por outra professora da casa. Uma vez confrontado, argumentou que
era material de pesquisa aos alunos e que estava ajudando a disseminar a visão
doutrinária da professora. Quando soube do caso, a autora do livro agradeceu a
suposta gentileza do colega professor, mas pediu que não fossem mais feitas
fotocópias do seu trabalho no ambiente universitário.
A naturalidade com que se encara a situação é
que assusta. Tenho bons amigos que vivem de direitos autorais e de imagem
(escritores, atores, roteiristas, fotógrafos e jornalistas) e que assumem
consumir pirataria, principalmente para encontrar filmes e livros raros. “É
mais fácil que já consigo o material logo, em vez de encomendar”, defendem. É a
celeridade engolindo a moral.
Outro argumento dos que defendem a pirataria é
a disseminação do conteúdo. Segundo a lógica deturpada, a pirataria contribui
para que se leia mais. Em tom de consolo, ainda dizem que alguns leitores
comprarão o livro depois. E daí? Funciona como alguém que rouba chocolates numa
loja de departamentos. É crime, mesmo que o cliente passe a gostar do chocolate
e comprá-lo depois.
Por vezes, nos departamentos de marketing, as
editoras até oferecem trechos e capítulos do livro para download gratuito e
legal, mas a obra completa de um autor não é (nem pode ser) amostra grátis de
seu trabalho. Afinal, tanto o cinema como a literatura e a música são
manifestações artísticas, mas também servem a sustentar diversos profissionais
do mercado. Ignorar a realidade econômica em benefício da facilidade e
disseminação do conteúdo não é mera inconsciência, é má-fé.
Ainda assim, os sites disponibilizando
material pirata crescem a cada dia. Esta semana, um economista de um periódico
de renome, ao tratar das contenções de despesa que as famílias poderiam fazer
em período de crise, sugeria substituir cinema e Netflix por download de
filmes. Segundo a mesma lógica, livros e músicas também deveriam ser
“substituídos” — eufemismo para “pirateados”. Não estou dizendo que sou um
pilar da ética. Mas compro meus DVDs, meus livros e faço uso de aplicativos
pagos para escutar as músicas que me interessam.
Esta ideia de Robin Hood do conteúdo não me
atrai, mesmo que os leitores comprem o livro depois. Vale a máxima: os fins não
justificam os meios. Não bastasse, mesmo alegando miséria, é comum que o
pirateador gaste seu dinheiro para comer bem, viajar e sair. Acredite, não é o
preço do livro ou do ingresso de cinema que é o problema.
Não sou contra autores que autorizam a
publicação gratuita do seu trabalho — enquanto detentor dos direitos autorais,
eles têm o direito de fazer o que bem entenderem. Tampouco acredito que a arte
atenda somente a fins econômicos — em alguns momentos, já doei meus livros a
bibliotecas de escolas públicas e a jovens carentes. Acontece que estas são
exceções, não a regra. Fazer literatura, cinema e música é trabalho e deve ser
remunerado como tal.