Uma reflexão sobre a CPI do Ecad
Por Rodrigo Moraes – advogado do Ecad na Bahia
Publicado no site Caramurê
Durante os trabalhos da CPI do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), houve uma Audiência Pública, realizada, no dia 27 de outubro de 2011, na Assembleia Legislativa do Estado da Bahia. Participei dessa Audiência. Dei um depoimento de pé, na tribuna, na presença do senador Randolfe Rodrigues, presidente da CPI, na qualidade de professor de Direito Autoral da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Todavia, não consta, no relatório final da CPI, a minha participação. Meu depoimento foi ignorado no relatório final. Não consta sequer uma linha do que eu disse. Meu nome não é citado. Por quais razões? Por eu ser advogado do ECAD no Estado da Bahia? Foi esquecimento da Comissão ou velado veto ao meu ponto de vista? Lembro-me do que falei.
Primeiramente, falei do art. 113-A, que constava na primeira versão do Anteprojeto de Reforma da Lei de Direito Autoral, elaborado pelo Ministério da Cultura. Esse dispositivo (importantíssimo!) previa o seguinte: “Art. 113-A. Caberá ao Poder Executivo dispor, em regulamento, sobre a manifestação do Ministério da Cultura, no processo de renovação de concessões públicas outorgadas a organismos de radiodifusão, acerca da adimplência desses organismos no que tange aos direitos autorais”. Misteriosamente, esse artigo foi suprimido nas versões seguintes do Anteprojeto; não consta na redação final enviada à Casa Civil. Por que? A quem interessa essa supressão?
O Poder Público, quando contrata com instituições privadas, exige regularidade fiscal e previdenciária (Lei 8.666/93, art. 27), além de regularidade trabalhista. Com a vigência da Lei 12.440, de 07 de julho de 2011, que alterou o art. 27 da Lei 8.666/93, Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública, foi instituída a chamada “Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas”. A regularidade trabalhista passou a ser requisito de habilitação no certame licitatório. Sociedade empresária com débito trabalhista não pode mais celebrar contrato com o Poder Público.
Pois bem. Os compositores não costumam ser empregados de carteira assinada, mas será que não são trabalhadores intelectuais? Não merecem, também, a tutela do Poder Público?
Então, por que será que uma emissora de rádio ou TV que deve milhões de direitos autorais – prejudicando, assim, inúmeros trabalhadores intelectuais – consegue a renovação da concessão? Fiz essa pergunta na Audiência Pública. O senador Randolfe Rodrigues nada disse. Muitos compositores presentes aplaudiram esse meu questionamento.
Faço, agora, outra pergunta: o Senado Federal é transparente nas renovações de concessões para emissoras de rádio e televisão? O art. 175 da Constituição Federal afirma que a concessão de serviços públicos (que inclui a concessão de rádio e televisão) será feita “sempre através de licitação”. No Brasil, infelizmente, impera, na seara da radiodifusão, o favoritismo espúrio. Como bem denuncia o administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello, “é grande o número de congressistas que desfruta de tal benesse. Neste setor reina – e não por acaso – autêntico descalabro. […] O tratamento escandaloso que a Constituição dispensou ao assunto revela que inexiste coragem para enfrentar ou sequer incomodar forças tão poderosas – as maiores existentes no País. Veja-se: a disciplina da matéria foi estabelecida no art. 223 da Lei Magna. Ali se estabelece que a outorga e renovação de concessão, permissão ou autorização para radiodifusão sonora e de sons e imagens competem ao Poder Executivo, mas que o Congresso Nacional apreciará tais atos no mesmo prazo e condições conferidos aos projetos de lei de iniciativa do Presidente, para os quais este haja demandado urgência. A outorga ou renovação só produzirão efeitos após deliberação do Congresso. Agora, pasme-se: para não ser renovada concessão ou permissão é necessário deliberação de 2/5 (dois quintos) do Congresso Nacional e por votação nominal! Contudo, há mais, ainda: o cancelamento da concessão ou permissão antes de vencido o prazo (que é de 10 anos para as emissoras de rádio e de 15 para as de televisão) só poderá ocorrer por decisão judicial, contrariando, assim, a regra geral que faculta ao concedente extinguir concessões ou permissões de serviço público!” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 28 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 711-712).
O segundo ponto que tracei, na m inha fala, foi este: inúmeros municípios do Estado da Bahia (e de todo o Brasil) dão calote em matéria de direitos autorais. Ou seja, o próprio Poder Público costuma dar péssimo exemplo. Não raro, desrespeita os criadores (trabalhadores) intelectuais. Várias municipalidades de todo o País vêm sendo condenadas pelo Poder Judiciário. A jurisprudência do STJ entende ser devido o pagamento de direitos autorais pelos municípios que promovem festas musicais para os munícipes.
O Secretário de Cultura do Estado da Bahia, Albino Rubin, também presente na Audiência Pública, falou em “acesso à cultura” e “democratização”. Em seu depoimento, disse que “a atual configuração do Ecad não coaduna com os princípios democráticos e com o objetivo de equilíbrio, pois ele se caracteriza como um monopólio privado, sem controle por parte do Estado”. O Secretário, todavia, nada disse sobre a inadimplência de inúmeras prefeituras do Estado da Bahia, muitas, inclusive, sob a gestão de representantes de seu próprio partido. Para ele, portanto, parece soar democrático gastar milhões em cachês de bandas, e simplesmente nada em pagamento de direitos autorais. A visão de isenção das prefeituras municipais, sob o pretexto de que a população tem direito à cultura, é, a meu ver, caolha, míope, equivocada. É dever do Estado, e não dos autores, apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais. As pref eituras devem oferecer à população oportunidades públicas e gratuitas de lazer e cultura, desde que sem prejuízo da classe autoral.
A CPI, num silêncio tumular, nada fala sobre esses dois aspectos relevantes para o aperfeiçoamento da gestão coletiva no País.
Não existe instituição perfeita. Não há perfeição nem no Executivo, nem no Legislativo, nem no Judiciário. Nem nas igrejas, nem nas associações, nem nas famílias. O ECAD também não é perfeito. Não está imune a críticas.
Entretanto, é covardia tentar dar uma surra no Escritório Central sem sequer dar um beliscão ou puxão de orelha nos grandes usuários devedores de direitos autorais. Os senadores não querem se indispor com a mídia. Por quais razões?
“Pau que dá em Chico, dá em Francisco”. Muitos também vêm dando pauladas na irmã do querido Francisco, a Ministra da Cultura Ana de Hollanda. Acontece que ela teve a lucidez de lembrar a todos, no Senado Federal, no dia 25 de abril de 2012, que “autor não vive de vento”. Eis as suas palavras de inelutável discernimento: “Acompanhei as lutas dos anos 60 e 70 de toda a vanguarda cultural a favor do direito à dignidade do artista como profissional e ser humano. Fico assustada quando vejo essa campanha pelo retrocesso. O autor não vive de vento, vive de seu trabalho. Me acusam de ser uma pessoa presa ao passado. Não sou presa ao passado, sou presa aos direitos conquistados com muita dificuldade”.
Eis a CPI do ECAD: implacável com os mais fracos, pusilânime com os mais fortes. Omissa em muitos aspectos, parcial e, portanto, suspeita. Com a devida vênia, essa CPI, a meu ver, não deixa de conter uma recôndita campanha Contra a Propriedade Intelectual.
Escrevo este breve artigo em memória do amigo Vevé Calazans, ao saber de seu falecimento, hoje pela manhã, 28 de abril de 2012. Ele, que é coautor do clássico “É d’Oxum” (“Nessa Cidade todo mundo é d’Oxum, homem, menino, menina, mulher…”), sofreu na pele o desrespeito ao seu trabalho de compositor. Mas não se omitiu. Combateu o bom combate e guardou a fé. Quem viver, Vevé, verá…