90 anos de samba
Criadora de melodias incomuns, Dona Ivone Lara festeja aniversário nesta quarta com roda de choro, feijão em família e lançamento de site
Dona Ivone Lara — 90 anos na próxima quarta-feira — prega um susto em quem lhe pergunta se continua a fazer samba:
— Não, parei…
Para logo depois corrigir:
— … por enquanto. Daqui a pouco, se Deus quiser, volto.
É bom saber que a parada é curta, apenas uma breve pausa no trabalho de uma mulher que há 70 anos vem ajudando a enriquecer o samba — e gêneros afins — com o raro dom de criar melodias.
Parar, mesmo, Dona Ivone não pretende tão cedo. Tem perto de 15 sambas recém-feitos com o parceiro Délcio Carvalho e continua aceitando convites para shows, como o de duas semanas atrás, no Rival. Tudo isso apesar das limitações impostas pela recuperação de uma fratura no fêmur e da vista direita perdida em razão da necrose decorrente de um glaucoma.
— Da esquerda, enxergo perfeitamente — diz ela, deixando claro que os óculos são apenas para não modificar a imagem que todos conhecem.
O aniversário será comemorado em família, com direito a bolo, feijão branco e roda de choro, esta um presente do músico Abel e de seu grupo. Dona Ivone vive hoje com o filho Alfredinho, a nora Eliana, netos e bisneto, numa acolhedora casa de Osvaldo Cruz. O ambiente é tipicamente suburbano, com o mesmo espírito de vizinhança que Dona Ivone conheceu no Rio de antigamente.
— Esta era uma rua sem saída — conta Eliana. — Desde que viemos morar nesta casa, pensamos em fechar a entrada para transformar o local num condomínio, mas fazia 20 anos que um dos vizinhos era contra. Até que o convidamos para uma roda de samba aqui em frente, e ele mudou de ideia.
Regida por Villa-Lobos
Samba de Dona Ivone Lara realmente tem força. É o que explica ela ter passado a vida a superar barreiras que pareciam separá-la do prazer de viver a música. Em menina, morando na Tijuca, fugia de casa para dançar e cantar nos terreiros do Salgueiro. Quando voltava, apanhava da mãe, que, apesar de cantora do Rancho Flor do Abacate, queria outra vida para a filha. O pai, sete cordas do Bloco dos Africanos, morreu quando Dona Ivone tinha apenas 3 anos. Aos 10, perdeu a mãe.
Por esses dados, acredita-se que tenha sido pouca a influência dos pais sobre Dona Ivone. Da mesma forma, o curto tempo em que estudou com Lucília Villa-Lobos, mulher do maestro famoso, não antecipou o que seria a compositora (foi por essa época que, aluna de Orsina da Fonseca, cantou “A lavadeira” no coro regido pelo próprio Villa-Lobos).
— Fui criada por uma tia, tia Cota, que também não gostava de samba — lembra ela, já se referindo aos tempos de Serrinha, quando trocou, para sempre, o Salgueiro pelo Império Serrano. — Tia Cota gostava de jongo, mas não de samba, que ela achava coisa para homem. Achava que eu, moça que pretendia fazer curso superior, não devia me misturar com a gente da escola.