Projeto de lei mexe pouco no antecessor
Texto final surpreende pela semelhança com versão proposta pelo ex-ministro Juca Ferreira no fim de 2010. Só cerca de 15% dos artigos, incisos e alíneas foram alterados
Cristina Tardáguila
Agência O Globo
RIO – Dez meses depois de causar comoção no meio artístico ao anunciar que iria rever o projeto de lei de direito autoral formatado pelo ex-ministro da Cultura Juca Ferreira em seus últimos dias no cargo, a ministra Ana de Hollanda encaminhou à Casa Civil no fim de outubro sua versão final do projeto.
O envio do documento, feito após aprovação de um grupo interministerial, transcorreu sob total sigilo, obedecendo a uma determinação do Ministério da Cultura (MinC).
Nesta semana, O Globo teve acesso ao projeto de lei proposto por Ana e a toda a documentação que o acompanhou — uma carta de apresentação do tema endereçada à presidente Dilma Rousseff e assinada pela ministra e todas as notas técnicas, que explicam os pormenores das mudanças propostas na lei.
O conteúdo do projeto final surpreende pelo alto grau de semelhança com a versão que havia sido proposta pelo ex-ministro Juca Ferreira no fim de 2010. Em quase um ano de trabalho, sofreu alteração substancial apenas cerca de 15% dos artigos, incisos e alíneas.
Em linhas gerais, a lei submetida pelo ministério à aprovação da Casa Civil segue três direções. Primeiro, pretende corrigir erros conceituais que embaralham a interpretação da legislação atual (a de número 9.610, de 1998) e sobrecarregam a Justiça de processos. Depois, busca incluir informações que haviam sido omitidas ou descritas de forma insuficiente na lei em vigor. Por fim, dá ao MinC o poder de supervisionar as entidades de gestão do direito autoral do país, apesar de não lhe permitir cassar a licença de funcionamento dessas instituições. Apenas o Judiciário poderá fazê-lo.
Entre outros pontos, o projeto da ministra propõe o direito à chamada “cópia única” — aquela que permite ao dono de uma obra comprada legalmente realizar uma cópia dela, sem fins lucrativos, em todos e cada um dos suportes ou formatos existentes, sem que seja preciso pedir autorização do autor ou pagar-lhe o respectivo direito autoral. O dono de um CD, por exemplo, está livre para copiar as faixas para seu próprio computador, iPod etc. No universo acadêmico, permite reproduzir “trechos” de obras (e não mais “pequenos trechos”, como hoje).
Autoriza também a cópia para conservação (como a digitalização de livros numa biblioteca), e a execução livre de músicas no interior de templos.
Sobre a supervisão estatal das entidades que recolhem e pagam os direitos dos autores, entre elas o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) — alvo de CPIs no Senado e na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro —, a lei define: para poder funcionar, essas instituições precisarão ser cadastradas pelo ministério e validar anualmente esse cadastro apresentando documentos que comprovem seu funcionamento.
O novo projeto propõe também que “os dirigentes das associações de gestão coletiva e dos escritórios centrais respondam solidariamente, com seus bens particulares, por desvio de finalidade ou inadimplemento das obrigações com os associados”, desde que haja comprovação judicial.
Além disso, pelo projeto de Ana, essas entidades passariam a cobrar dos usuários de obras autorais protegidas um valor proporcional ao uso real que fazem delas. E não mais um percentual estimado, como costuma acontecer atualmente. O documento também sugere a criação de um cadastro único de obras, um banco de dados centralizado e administrado pelo MinC, que substituiria todos os outros existentes hoje.
Em resumo, a nova lei se apropria de grande parte do trabalho realizado pelas gestões anteriores do MinC no quesito direito autoral e confirma a suspeita de que provocará polêmica quando chegar ao Congresso, passo seguinte à passagem pela Casa Civil. Na carta de apresentação que a ministra enviou a Dilma junto com o projeto, o alerta é claro: “Há disputas e conflitos de interesses envolvidos no presente projeto”, escreve Ana. “Buscou-se contemplar de forma equilibrada as diferentes demandas e críticas.” No mesmo texto, a ministra defende de forma contundente a atualização da Lei 9.610/98. Chega a avisar que o país corre o risco de ser constrangido internacionalmente se não fizer nada a respeito da lei de direito autoral.
O Brasil pode ter “suas políticas comerciais questionadas e mesmo sofrer retaliações comerciais”, ressalta Ana, na última página. “É imperativo superar o vazio institucional do Estado. (…) A ausência de ação executiva estatal tem fomentado relações assimétricas no âmbito desse direito privado.”
Especialistas comentam assunto “Se projeto de lei que o Ministério da Cultura (MinC) enviou à Casa Civil fosse uma obra autoral, seria um plágio, tamanha é sua semelhança com a versão do ex-ministro Juca Ferreira.” Esta é a conclusão do professor e pesquisador em direito autoral da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Allan Rocha. “Mas essa semelhança é uma ótima notícia”, ele pondera. Grande parte dos avanços obtidos na gestão passada, inicialmente criticados por Ana de Hollanda, continua. Se esse projeto passar assim, os autores terão conquistado maior proteção em suas relações contratuais e ampliado seus direitos. Para empresas e investidores, haverá mais segurança jurídica em suas atividades. Já a sociedade terá sido ouvida em sua demanda por acesso justo e legal aos bens culturais. Rocha queixa-se, porém, da parte sobre combate à pirataria digital. “A lei estabelece que basta uma notificação extrajudicial para que um provedor tenha que tirar uma obra do ar. Isso afeta direta e negativamente o direito de defesa”. Rocha e outros seis especialistas em direito autoral foram convidados a avaliar o projeto de Ana e a antecipar o debate que deve tomar o Congresso. Bruno Lewicki, vice-presidente da Comissão de Direito Autoral da OAB-RJ, concorda que a versão de Ana é “idêntica” à de Juca, e que, por isso, poderá pôr o Brasil “no mapa-múndi do direito autoral contemporâneo”: “Pontos que já foram polêmicos viraram consenso, como a ampliação dos usos livres”. Mas ele acha que “se perdeu a oportunidade” de criar uma fiscalização rigorosa do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) e das associações de gestão coletiva. “O MinC amenizou”, diz. Sydney Sanches, presidente da Comissão de Direito Autoral e Propriedade Industrial do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), discorda: “O sentimento que fica é que há um desejo do poder público de intervir ou controlar o direito dos criadores, e isso causa extrema insatisfação. A gestão coletiva foi criada pelos e para os criadores, e eles são e devem continuar sendo os gestores. Não me parece lógico um projeto que possua lacunas e que admita a interferência indiscriminada do Estado. O projeto é paternalista e demagógico”. Alexandre Negreiros, especialista em direito autoral que assessora o senador Randolfe Rodrigues na CPI do Ecad, elogia a ideia de o MinC poder autorizar associações a atuar na gestão coletiva do direito autoral e exigir que elas apresentem documentos anualmente para continuar ativas. Mas queria mais: “O novo projeto estabelece uma supervisão estatal dependente do judiciário. Apenas simula a regulação”, dispara. Pablo Ortellado, do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação da Universidade de São Paulo (USP), alerta para um risco: “ Ao prever um registro único de obras administrado pelo MinC, o projeto contraria a Convenção de Berna, que livra o direito autoral de entraves burocráticos, e emperra licenciamentos livres na internet, como o Creative Commons”. Ortellado aprovou, por outro lado, a permanência do artigo que estava na lei de Juca e que previa reprodução, tradução e distribuição livres de trechos de obras no ambiente acadêmico. A medida lhe parece “crucial”. Daniel Campello, advogado de direitos autorais e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que o projeto de Ana sustenta os avanços negociados com Juca em relação a contratos: “O texto define o que é a cessão de direitos, uma lacuna na lei atual, delimita a figura da licença e dá ao autor maior ingerência na administração de suas obras”. |