Significados, uma questão de poder – por Marisa Gandelman
Eis que, juntas, a Senhora Transparência e a colega Competição decidem submeter titulares de direitos autorais de música aos seus desejos.
O significado das palavras não é fixo no tempo e no espaço. O processo por meio do qual o senso comum atribui diferentes significados a elas é complexo e contínuo. Trata-se de uma obra em progresso.
Recentemente, algumas palavras ganharam importância. De tão usadas, acabaram se separando de seus significados. Uma dessas palavras é "transparência".
Lemos e ouvimos esse termo várias vezes por dia e parece que seu uso exaustivo tem a finalidade de reduzi-lo a algo com valor intrínseco. Quem não possui transparência se sente envergonhado, como se estivesse fora de moda.
Assim, reduziu-se o sistema de gestão coletiva de direitos autorais a uma única questão: ser ou não ser transparente. Quem não é deve ser punido. Ficará sob a supervisão do Poder Executivo, embora o Executivo nada saiba sobre essa complexa atividade, nem defina o significado de "transparência", nem questione a compreensão e aplicação do termo pelo órgão de supervisão.
Uma palavra vazia de significado utilizada à exaustão em um discurso também vazio de significado se transforma em dogma. Esse dogma justifica uma lei imposta de cima para baixo para forçar a estrutura existente a se comportar da maneira que uma nova lei determina ser transparente e eficiente. Justifica, mas não explica: por que passaria a ser transparente e eficiente?
Eis que a Senhora Transparência vai ao encontro da colega Competição e, juntas, decidem submeter os criadores e demais titulares de direitos autorais de música aos seus poderes e desejos. É isso mesmo que os interessados querem?
Discurso vazio, ou conversa fiada. No regime associativo, é na associação que se define o justo e se produz significado para os termos.
Há cerca de 150 anos, autores criaram as sociedades que operam no mundo inteiro a gestão coletiva de direitos autorais. Desde então, desenvolveu-se inteligência para organizar os dados relativos às obras e titulares sem os quais não é possível monitorar seu uso.
As sociedades de gestão coletiva pertencem aos autores e demais titulares de direitos autorais, portanto devem ser supervisionadas por eles. Os titulares devem se organizar de acordo com os estatutos de suas sociedades e formar um corpo de supervisão, eleito, que aponte o corpo operacional. Os titulares podem alterar livremente os estatutos das associações para que reflitam o significado que querem dar ao termo transparência e a outros termos que dão qualidade à gestão.
Assim se faz no mundo inteiro, na busca de formas para oferecer uma gestão de qualidade por custos menores, conforme definir o dono do negócio, desde que ele esteja disposto a participar da construção dos significados dos termos que guiam o funcionamento da organização.
Essa possibilidade jamais foi debatida aqui. Não há participação nem espaço para o diálogo. Há apenas um pouco mais do mesmo.
O Senado Federal, com aprovação da Câmara dos Deputados, enviou para a sanção presidencial um projeto de lei que não tem indícios de que vá entregar aquilo que critica faltar no atual sistema, especialmente a tão famosa "transparência". Mais uma cena do velho jogo político do governo brasileiro, que carece de significado e conteúdo, que se alimenta de si mesmo e vive em função da própria sobrevivência.
As consequências imediatas da votação sem debate e sem transparência parecem óbvias. O poder passa das mãos dos que hoje dirigem as associações que integram o Ecad para as mãos daqueles que estiveram ao lado dos políticos responsáveis pela votação em tempo recorde e que antecipadamente transferiram para o Executivo os poderes conquistados nesse processo.
Transferência de poder e autoridade também vazia de conteúdo, uma vez que não dominam, ou nem sequer conhecem, a complexidade da gestão coletiva. Tanto é que proíbem a licença em branco, consagrada no mundo inteiro, e determinam o uso de novos tipos de licenças mais custosas.
Sociedades de autores se dedicam ao desenvolvimento de ferramentas para diminuir os custos de transação e promover economia de escala. O caminho adotado pelo projeto de lei promove a mudança do controle da estrutura para o Poder Executivo, porém não propõe inovação em benefício dos criadores. Ao contrário, propõe mudanças que tornam a operação mais custosa, restringe os direitos dos titulares e sugerem critérios de licença que resultarão excludentes.
MARISA GANDELMAN, 55, doutora em relações internacionais, é diretora-executiva da União Brasileira de Compositores (UBC)