Lei de direitos autorais
Rodrigo Moraes – Lei de Direitos Autorais
Advogado, procurador do Município de Salvador e professor de Direito da Propriedade Intelectual na Ufba, Rodrigo Moraes defende que haja mais respeito ao direito do autor por parte das empresas e do Estado e critica a negligência do próprio poder público em relação à questão. “O Estado é um dos piores exemplos em matéria de pagamento de direitos autorais”, lamenta. Em entrevista ao Bahia Notícias, Moraes, um dos responsávels pela defesa do Escritório de Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), é a favor de que poucas mudanças sejam aplicadas à Lei de Direitos Autorais, que ele considera “excelente”, e é contrário à vinculação do escritório a órgãos estatais. Para ele, a gestão de Ana de Hollanda à frente do Ministério da Cultura foi positiva. Gilberto Gil, no entanto, “deixou muito a desejar”. O jurista rechaça a aprovação de um Marco Civil da Internet, que, em sua opinião, “atende a interesses da indústria pontocom”, e acha a repercussão da polêmica mudança dos termos do usuário do Instagram “muito boa”. “O Instagram recuou [em vender as fotos dos usuários] porque houve um grande rebuliço. Os próprios autores [das fotos] abriram os olhos, e eles estão demorando para fazer isso”, avaliou.
Bahia Notícias – O que a Lei de Direitos Autorais Garante aos produtores culturais?
Rodrigo Moraes – A Lei de Direitos Autorais protege não somente autores, não somente criadores intelectuais, mas também outros titulares de direitos conexos, como cantores, intérpretes, músicos executantes, os próprios produtores fonográficos, aquela sociedade empresária que investe, coloca o seu capital, seu investimento para fazer um disco, um CD, um DVD. Obviamente que todo o capitalismo é baseado em um sistema de lucro. Então se um produtor fonográfico investe em um CD, em um DVD novo de um artista, precisa ter um retorno para fazer outros discos. A pirataria física e digital desaquecem o mercado. Então, o objetivo da Lei de Direitos Autorais é fomentar a criatividade. Incentivar. Porque a partir do momento em que você tem retorno com o que você faz, vai ter motivação para fazer outras obras. A Lei é baseada nisso: o Estado confere uma exclusividade temporária para o autor, e é temporária porque cai em domínio público um dia – no Brasil o prazo é de 70 anos – , como um incentivo. Depois essas obras retornam para a comunidade. Só que o que acontece hoje no Brasil e no mundo é que o direito de autor está sendo tachado como um grande empecilho para a circulação de obras, para a circulação de informação e para a circulação de educação, o que é uma grande mentira. O direito de autor não é entrave, não é empecilho para acesso à cultura. Hoje, no Brasil, há uma campanha com interesses de grandes grupos econômicos, sobretudo ligados à internet, de fazer com que o direito autoral seja visto como um patinho feio, como um vilão. Há uma campanha de demonização do direito de autor. [Dizem] que a lei é muito restritiva, muito obsoleta, e na verdade não é isso. Na verdade a cultura tem preço. Não há gratuidade em nada no sistema capitalista. Essa história de que a televisão é gratuita não é verdade. Há anunciantes ali. Nas emissórias de rádio também. E, para funcionar, precisa ter pagamento. No Brasil, o esquema é tão injusto que muitas vezes só quem arca com o ônus da circulação e da difusão das obras é o autor. Muitas prefeituras da Bahia são inadimplentes em relação aos direitos autorais. O próprio poder público muitas vezes é um péssimo exemplo de respeito à própria lei. No São João mesmo, agora é centenário de Luiz Gonzaga, e suas músicas são muito executadas. O que é que alguns prefeitos dizem: que estão trazendo música gratuita para o povo e que não deveria haver cobrança de direitos autorais, porque isso é trazer cultura e a cultura é um direito constitucionalmente previsto. A cultura é um direito sim, previsto na Constituição. Mas quando o prefeito paga R$ 200 mil, R$ 300 mil de cachê para uma banda, a banda ganha, quando uma pessoa de Salvador aluga uma casa, o morador de lá ganha, o cara que monta o palco ganha, quem faz a sonorização e iluminação ganha, o prefeito ganha popularidade, ganha voto, porque se não fizer festa o povo não vota. Uma cadeia de pessoas lucra com isso direta ou indiretamente e só quem não lucra são os autores, porque muitos municípios da Bahia não pagam direitos autorais. A municipalidade, quando faz festa, tem de pagar o direito do autor.
BN – E esse pagamento não é feito porque o valor é muito alto?
RM – Esse pagamento é um direito privado, e há um órgão no Brasil, que é o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o Ecad, que faz essa cobrança. Alguns municípios respeitam, outros não. Até porque há uma lei que diz que tem que pagar.
BN – E como é feita essa arrecadação? Como o detentor daquele direito pode receber? Como ele pode saber que as músicas dele estão sendo executadas em um evento que ele desconhece?
RM – A verdade é isso. O sistema de gestão coletiva é fundamental. Em todos os países desenvolvidos do mundo existem órgãos como o Ecad, porque a gestão individual seria praticamente impossível, de um autor sair em cada show, em cada evento, fazendo essa cobrança. A gestão coletiva é uma necessidade imprescindível. Uma condição sine qua non para que haja um funcionamento. É uma obrigatoriedade que as bandas, quando executam obras publicamente, entreguem o repertório para o órgão arrecadador. Na verdade, caberiam a muitas bandas mostrar o repertório, dizendo ‘eu executei tais e tais músicas’. Muitas bandas em que há autores que fazem parte do próprio conjunto musical cumprem isso. Por exemplo, o Jammil e uma Noites entrega o repertório corretamente. Por quê? Porque tem Manno [Goes] e tem Levi [Lima] que são autores de praticamente o repertório inteiro. Ele têm interesse em divulgar corretamente a lista para o Ecad. Isso vai retornar para eles. Só que há, infelizmente, até mesmo por parte de alguns artistas, um descaso, um desdém em fornecer esse repertório de maneira correta. E o Ecad não tem infelizmente como fiscalizar todas as festas que ocorrem no Brasil, um país continental, sob pena de você ter que contratar um exército de funcionários. Nas festas mais importantes, há essa fiscalização. Hoje já se grava o carnaval, hoje já se gravam eventos importantes, mas outros infelizmente não dá pra você gravar, então os próprios artistas poderiam colaborar mais nisso, para que houvesse uma distribuição mais equânime, para que esse repertório seja devidamente indicado.
BN – Existe uma projeto de lei para atualizar a Lei de Direitos Autorais. Por que isso é necessário?
RM – A lei precisa de alguns ajustes pontuais. Mas eu digo para você: a lei de 98, a atual lei vigente é a 9.610/98, a meu ver, é uma lei excelente. É uma lei muito boa que poderia ter alguns pequenos ajustes. Por exemplo: prazo prescricional. O prazo que o ofendido teria para ajuizar uma ação. Esse artigo foi vetado, na época, por [o presidente] Fernando Henrique. Hoje há uma dúvida sobre qual seria o prazo prescricional para o ajuizamento de uma ação indenizatória. Se seria de três anos ou de cinco anos. Como foi vetado o artigo, esse seria um dispositivo que merecia, no projeto, que novamente haja um prazo de cinco anos como prazo prescricional. Mas a lei é muito boa. Os dois capítulos mais polêmicos do projeto são: primeiro, o capítulo sobre as limitações dos direitos autorais. Os artigos 46 a 48. Ou seja, eles querem ampliar de oito incisos para mais de 20 as possibilidades de uso de obra sem a necessidade de prévia expressa autorização do autor. A meu ver, algumas dessas tentativas de limitações aos direitos do autor fragilizarão o direito autoral, infelizmente; segundo, tem a questão da supervisão ou não estatal no Ecad.
BN – Atualmente o Ecad não é vinculado a nenhum órgão estatal…
RM – Exatamente. Antigamente, havia um órgão chamado Conselho Nacional de Direito Autoral, que era um órgão ligado ao Ministério da Cultura. Esse CNDA foi desativado na época de Collor. O Ecad hoje não tem nenhuma ingerência estatal. E, no meu ponto de vista, quem defende isso o faz sem trazer uma contrapartida. Hoje, os radiodifusores, as emissoras de rádio e TV têm um poder muito grande. A gente está falando de Globo, de Band, de grandes grupos que têm um poder para a opinião pública muito grande. Existem muitas emissoras inadimplentes no Brasil. E há uma possibilidade de renovação da concessão pública, que pode ser de 15 anos ou de dez anos. Havia, na primeira redação do projeto, um dispositivo, que depois sumiu, curiosamente, que dizia que as emissoras que estivessem inadimplentes em matéria de direito de autor poderiam ter um parecer contrário no Ministério da Cultura para renovar a concessão. Isso sumiu, sabe por quê? Tem várias emissoras de rádio que têm políticos como donos. Elas não têm nenhum interesse nisso. E hoje essa questão de radiodifusão não tem nenhuma supervisão estatal. Essa questão de renovação é uma caixa preta mesmo. Isso atende a interesses de grupos políticos, de igrejas, ou seja, se o Estado, a meu ver, quisesse supervisionar o Ecad, mas também trazendo um rigor muito maior para essas renovações de concessão, poderia ser positivo. Mas na verdade não é isso que eles querem. O grande risco de o poder público entrar nessa supervisão é querer dizer o preço do direito de autor. Isso é um direito privado. Quando o Ecad diz que é 2,5% e traz parâmetros de valores e percentuais de cobranças, isso é um direito privado. Assim como a emissora tem direito de dizer quanto é o espaço para o anúncio, os autores também têm direito de dizer o valor do direito de autor. Meu grande receio é que o Estado já é um péssimo exemplo no respeito a esse direito, [se vê isso] pelas próprias prefeituras. Ou seja, o Estado, que diz que quer ajudar, que vem com esse ar paternalista de dizer que está entrando como bom moço, que quer ajudar o pobre do autor a trazer mais transparência… o próprio Estado é um dos piores exemplos em matéria de pagamento de direitos autorais. Então, por que eles não querem isso? Por exemplo, eu sou procurador do município de Salvador, e eu sei que se você participa de uma licitação e estiver devendo tributo, você é desclassificado. Há uma exigência de regularidade fiscal. Ou seja, quando é interesse dele, o poder público faz com que você perca a licitação. Se você tem dívida trabalhista, você também pode perder uma licitação por ter esse descumprimento. Mas se você estiver devendo R$ 3 milhões em direitos autorais, você consegue uma renovação. Isso é um escândalo, isso é um absurdo. Por trás desse projeto há o interesse de grandes grupos econômicos de radiodifusores com objetivos de tarifar o valor do direito autoral, que é um direito privado.
BN – Como é que podem ser mudadas as relações de direitos autorais com a aprovação do Marco Civil da Internet?
RM – O Marco Civil da Internet atende induvidosamente a interesses da indústria “ponto com”. Isso aí eu não tenho a menor dúvida, até escrevi recentemente um artigo sobre isso. O que é que eles dizem? Que não podem fiscalizar a obra. Como é hoje isso? Você notifica extrajudicialmente um provedor, e diz, ‘olha, aqui está tendo distribuição indevida de obras minhas ou das quais eu sou titular, eu quero que você pare com isso’. A partir do momento em que você notifica a empresa, informa para o provedor o link em que está ocorrendo o ilícito autoral, se ele não toma uma atitude para retirar esse conteúdo ilícito, ele estará em mora, como a gente chama em Direito, e consequentemente a partir dali haverá responsabilidade civil dele. O que é que o projeto quer dizer? Que essa notificação extrajudicial não valeria coisa nenhuma. Você precisaria ajuizar uma ação judicial, pagar obviamente custar judiciais, fazer um pedido de liminar e aí depois que a Justiça dissesse ‘tire esse link do ar’, a partir do momento que você provedor não cumprir isso, seria responsabilizado civilmente. Isso fomentaria uma enxurrada de processos judiciais em um Poder Judiciário de uma morosidade absurda. Você iria impôr aos autores e aos titulares de direitos autorais a necessidade de entrar com ação, gastar dinheiro com custos judiciais e pedir uma liminar que muitas vezes não corre de um dia para o outro. Podem passar dois, três, quatro, cinco meses para obter uma liminar. Só depois daí o provedor seria responsabilizado. Isso é um privilégio que não existe em nenhum lugar. Se você tem um bônus, você tem que ter um ônus. Esse projeto do Marco Civil, eu não tenho a menor dúvida de que, se você for ver, quem está por trás apoiando é o Google e o Facebook. São grandes grupos econômicos que não respeitam ou não querem respeitar os direitos autorais. A prova essa semana foi o caso Instagram.
BN – Esse caso gerou uma preocupação muito grande com os usuários, alguns até encerraram as contas por conta disso. Como é que fica essa relação, já que existe a possibilidade de venda dessas fotos?
RM – Para mim foi muito bom que o Instagram voltou atrás depois da repercussão negativa. Ele recuaram porque houve obviamente um grande rebuliço, os próprios autores abriram os olhos, e eles estão demorando para abrir os olhos. Porque na internet há uma falsa sensação de gratuidade. Por exemplo, esse projeto Criative Commons, que eu inicialmente achava um projeto interessante, se você estudar melhor e se aprofundar melhor vê, por exemplo, que a licença que você dá para eles é definitiva. Não é uma licença por cinco, por dez, por quinze anos. Então, se você adere àquilo ali, é definitivo. Claro que quanto mais conteúdo gratuito houver para essas empresas, melhor para elas. Pergunte a um taxista se eles gostariam que a gasolina fosse gratuita. Eles vão dizer: ‘claro que sim, porque eu tenho um lucro maior’. Então, há uma falsa aparência de gratuidade, mas, na verdade, não há nada de gratuidade, porque eles estão lucrando muito. O YouTube lucra muito com música, então têm que pagar direito de autor. ‘Ah, mas o usuário não está pagando’, mas existem milhões de anúncios ali presentes. Então, muita gente ainda não acordou. A Internet não é gratuita, assim como aqueles shopping centers disponibilizam ônibus ‘gratuitamente’ para que o consumidor vá até o shopping fazer compras. Obviamente que há uma intenção do shopping que o cliente vá para consumir. Aquilo ali não é gratuito, faz parte do próprio lucro. Hoje há uma proliferação de uma chamada ‘generosidade intelectual’ que esses atores da indústria ponto com vêm dizendo: ‘Você, autor, tem que ser generoso. Você tem que trazer uma generosidade intelectual e disponibilizar suas obras’. O autor pode ser generoso se ele quiser, mas ele não pode ser obrigado a ser generoso. Por exemplo, se você é compositor, e é desconhecido, e se quiser disponibilizar suas obras para que as pessoas façam um download, e você acha que isso é melhor, a lei te garante isso. É facultativo. E por quê? Porque você vai ter mais visibilidade para vender mais show. Então, para você, para sua carreira, isso pode ser positivo, mas para carreira de outras pessoas, não. Eles querem tratar todo mundo no mesmo padrão e dizem que quem não permite isso seria uma pessoa não generosa, o que não é verdade. Muitos criadores vivem disso, muitos autores vivem exclusivamente disso. Por exemplo, João Ubaldo Ribeiro paga as contas dele através de direitos autorais. Imagine se ninguém compra mais o livro dele? Que agora com o livro digital, todo mundo faz uma cópia gratuita em um tablet. Quer dizer, como é que ele vai pagar as contas? Essa é a grande discussão. Você não pode ser generoso com a sua única fonte de sobrevivência. E essa questão do Instagram, para mim, é paradigmática. Muitos autores fotógrafos disseram: ‘espere aí. Então, eles vão poder vender minhas fotos?’. Tanto que eles recuaram. As pessoas já estão acordando, estão começando a perceber que essas redes querem que quanto mais gratuidade houver em matéria de obras, mais lucro eles terão. E esse lucro tem que ser dividido.
BN – Mas a lei permitiria que, nesses casos, a rede social pudesse vender as imagens, ou conteúdo que em tese não foi produzido por ela, sem repassar os recursos provenientes desta comercialização?
RM – A lei do Direito Autoral permite que você faça uma cessão definitiva. Só que neste caso concreto, como não havia uma transparência do contrato, que seria um contrato de adesão, você teria que alegar outros argumentos jurídicos, como cláusula abusiva, que não informa direito o contratante. Ou seja, haveria outros argumentos para ser utilizado nesse caso. Mas o do Creative Commons, ali, só advogado que lê cuidadosamente entende que aquela licença é definitiva. Mas ele não tem nenhum interesse em divulgar isso. Por que ele não tem? Porque, na verdade, querem que você disponibilize gratuitamente suas obras. Na minha visão, eles camuflam isso. Eu, por exemplo, que já sou advogado e professor de Direito Autoral, quando o Creative Commons surgiu no Brasil, achei que era uma coisa interessante e depois é que eu abri meus olhos. Se até eu fui incauto, imagine a maioria da população.
BN – Teve até uma polêmica sobre isso há um tempo, sobre a retirada da marca do Creative Commons do site do Ministério da Cultura…
RM – Você não precisa ter Creative Commons para disponibilizar a sua obra. No meu próprio site, que tem vários conteúdos de propriedade intelectual, como entrevistas e até uma monografia minha. O aluno vai lá e pode baixar em PDF, e eu não precisei do Creative Commons para isso, porque eu tenho todo direito de colocar no meu próprio site sem precisar dessa licença pública. Obviamente, isso foi até uma questão política. A ex-ministra Ana de Hollanda [Cultura] foi muito equilibrada em matéria de direitos de autor porque ela é irmã de autor, sabe que muita gente vive disso. Então, obviamente que eu deixo minha crítica a Gilberto Gil, apesar de achar que ele tem o mérito de ter levantado essa questão, em matéria de direito de autor, função social, que levantou uma discussão que não havia muito no Ministério da Cultura. Teve o mérito dele, mas, como ministro da Cultura, eu nunca vi Gilberto Gil criticando municípios que não pagavam direitos de autor, nunca vi Gilberto Gil fazer um alerta para as emissoras de rádio que não pagam direito de autor. Quer dizer, só flexibilizar, flexibilizar e só o autor ter que ceder. Eu acho que a gestão de Gil, apesar de ter tido méritos, em matéria de direito de autor, no meu ver, deixou muito a desejar.
BN – Você acha que com essa nova gestão do Ministério da Cultura a discussão dos direitos autorais pode caminhar?
RM – Eu não sei. Eu tenho muita dúvida. Até porque a forma como a ministra [Marta Suplicy] entrou no ministério foi uma forma muito estranha, foi uma questão de apoio político para São Paulo. Eu não sei exatamente o que vai ocorrer e espero que ela tenha esse discernimento, esse cuidado, até porque ela é mãe de autor, de cantor – o Supla e o João. Espero que ela brigue pelos autores e com pessoas que muitas vezes os políticos não querem brigar. Político não quer brigar com a emissora de rádio, político não quer brigar com a emissora de TV. Alguém tem que brigar por esse pessoal. Então, quem briga hoje são os autores. O Ecad briga e tem independência para poder brigar. O grande medo nessa ingerência estatal dentro do sistema de gestão coletiva é exatamente você não querer brigar. E outra contradição que eu trago aqui. A história do Marco Civil da Internet. Era uma enxurrada de processos. Os defensores do Marco Civil, que não gostam de direitos autorais, que têm repulsa a direitos autorais, dizem que no Ecad há muitas ações e que se houvesse um sistema arbitral na área de gestão coletiva diminuiria os processos judiciais, porque, de fato, o Ecad tem muitas ações judiciais contra muitos usuários que não pagam. Quer dizer, para cá, eles querem diminuir o número de ações, lá, aumenta. É uma contradição. Você vê que isso não é uma ideologia, são interesses pontuais. Meu grande receio é esse, de o Poder Público não ter independência para brigar com rádio e com TV. Infelizmente, os políticos são reféns da mídia. São poucos políticos que tem independência intelectual e moral para poder brigar. E é por isso que têm muitos aí que estão no holofote da CPI do Ecad, porque, obviamente, isso traz visibilidade, traz notoriedade. porque dá uma ampla repercussão, porque os próprios meios de comunicação têm todo interesse em divulgar esses deputados que estão na CPI porque há quintas intenções nisso.
BN – Como é que uma pessoa, um usuário da internet, por exemplo, pode se proteger contra esses abusos das redes, pois a maioria não lê aquele termo de adesão quando se cadastra, já que estão produzindo conteúdos e o que fazer quando isso é apropriado de forma indevida?
RM – Primeiro, eles não estão produzindo conteúdo, eles estão recebendo conteúdo. Quem produz é o fotógrafo, o cantor, enfim. Na verdade, elas são cláusulas abusivas. Os autores devem ter todo cuidado com isso, e, para mim, ainda que haja, ou se houver utilização, deverá haver um ajuizamento de ação. A última palavra sempre será do Poder Judiciário. Também digo que há, por parte da maioria das pessoas, uma falsa noção do que é a Internet, de que ‘a internet é um local público e o que está ali eu posso usar’. Por exemplo, no meu escritório, nós temos diversas ações contra empresas que utilizam obras fotográficas indevidamente, e quem dizem ‘ah, mas eu achei a foto na internet’. Mas a foto tem direitos reservados. O fato de um fotógrafo disponibilizar as obras dele para as pessoas verem não autoriza uma empresa a utilizar aquela foto para um produto lucrativo. Se tem um carro estacionado em uma avenida, você tem direito, só porque o carro está estacionado na rua, de pegar o carro da pessoa e usar? Você não pode fazer isso. A mesma coisa é na internet. Porque está na internet, lá no Google Imagens, você vai e usa uma imagem para fazer um anúncio publicitário da sua empresa. Isso não é possível, isso não é permitido. Há uma desinformação muito grande. Eu digo para você, a informação não é só da sociedade, o próprio meio acadêmico… Hoje, no Brasil, temos mais de mil faculdades de Direito. Você conta nos dedos das mãos quantas faculdades de Direito trazem a matéria de Direito Autoral.
BN – É um mercado que ainda tem uma carência de profissional…
RM – Com certeza. Na Universidade Federal da Bahia (Ufba), que eu dou aula, existe a disciplina. É optativa, não é obrigatória, mas há hoje um grande interesse no tema. Porque a propriedade mais valiosa no século 21 é a propriedade intelectual. O Brasil ainda está muito atrasado nisso. A propriedade intelectual, que é esse estudo não só de direito de autor, mas como de patentes, de marcas, isso, nos Estados Unidos é tratado de maneira seríssima. Tanto é que a própria Apple está nessa briga de patentes com a Samsung. Hoje, esse bem intangível, que é a patente, a marca, tem um valor enorme. Por exemplo, o Bahia Notícias, essa própria marca, tem um valor muito maior que o próprio espaço. Seria muito pior a perda da marca Bahia Notícias do que se pegasse fogo na sede do Bahia Notícias. Por que se pegar fogo você reconstrói, mas reconstruir uma marca é muito mais difícil. As pessoas ainda não acordaram para isso. A gente vê muito empresário que não faz o registro de marca, porque há muita desinformação. Agora que o Brasil está começando a se despertar o interesse pela proteção desse bem intangível, seja o direito de autor, seja na área de marcas e patentes.
BN – Como uma pessoa pode registrar uma obra que tenha feito?
RM – Em matéria de Direito de autor, a lei diz que o registro é facultativo. E isso é positivo. Quando a lei diz que o registro não é obrigatório, a finalidade da lei é proteger o autor, que geralmente é refratário a essas coisas burocráticas de registro. Por exemplo, você é jornalista, você tem um texto escrito e mandou esse texto por e-mail para alguém e outra pessoa utiliza vários parágrafos seu em um livro, isso é plágio. Isso é ilícito. ‘Mas você não registrou aquilo’… mas você tem a notícia publicada, e isso é prova. O registro, no meio de autor, é um mero meio de prova, que pode ser, inclusive, revogado. O registro pode ser contestado em juízo. Não é definitivo. Não traz uma presunção absoluta de autoria. A presunção é relativa. Por exemplo, se eu canto uma música para você, você vem com seu gravador e grava essa música e registra em seu nome, a presunção é de que você é autora, mas se eu tenho um CD gravado de cinco anos atrás, se eu tenho provas escritas, testemunhais, se eu tenho rascunho da letra que eu escrevi, posso entrar com uma ação para desconstituir esse registro. Não é porque você registrou que você passa a ser a titular e a detentora dos direitos autorais. Em matéria de Direito Marcário isso é diferente. Para você ser titular de uma marca, precisa se dirigir a um órgão chamado INPI e fazer o pedido de registro. Você só será titular daquela marca depois que o INPI disser que você tem de fato direito a marca depois de uma pesquisa realizada. A mesma coisa é a patente. Você cria uma invenção, faz uma máquina nova, obviamente se você não faz o depósito desse pedido de patente, isso cai em domínio público. Muita gente já perdeu dinheiro no Brasil por falta de registro. Eu não acho que os americanos sejam mais inventivos do que nós, mas lá, qualquer invenção, a primeira coisa que fazem é registrar o pedido no órgão de patentes. Aqui não. Eles divulgam isso, e quando tentam fazer o depósito, a coisa já caiu em domínio público. Porque um dos requisitos da invenção é a novidade e a novidade se perde quando você divulga isso.
BN – No Brasil, a gente vê isso com frequência, uma disputa por quem detém o direito autoral, por quem escreveu a música sucesso, como foi do hit “Aí Se Eu Te Pego”. Como é que os direitos podem ser divididos? Porque, às vezes, uma música é escrita com várias pessoas. Como é feita essa distribuição?
RM – Tem dois direitos nesta questão. Existe o direito de autor, que é o direito do criador, e existe o direito conexo. O direito conexo, historicamente, surge com a criação do fonograma. Então, quando Thomas Edison criou o fonograma, deixou de ter só a música. A música pode ser gravada e escutada em meios públicos. Os intérpretes disseram assim: ‘também quero ganhar com isso, não é só o autor que tem que ganhar, é a minha voz que está sendo executada publicamente’. Na época, houve uma ciumeira muito grande, tanto que os intérpretes tiveram que fazer uma convenção própria, porque os autores disseram que na Convenção de Berna eles não entrariam. Diante disso, os cantores e intérpretes criaram a Convenção de Roma na década de 1960. Ainda existe essa ciumeira, digamos assim, de quem é mais importante. Para mim, tanto o autor, quanto o intérprete, são importantes. Não existe intérprete sem música e não existe música sem o intérprete. Um precisa do outro. Às vezes, uma pessoa como Milton Nascimento tem a sorte de ser um grande intérprete e ser autor. Mas tem gente que é só intérprete, tem gente que é só autor. E os próprios músicos têm direitos conexos de executante. Obviamente que o percentual é menor. Quando uma música de Ivete Sangalo é executada em uma emissora de rádio, o pagamento não é só para os autores. O Ecad não cuida apenas de compositores, há outros titulares dentro do sistema de gestão coletiva. Uma música que Ivete canta, quem ganha é a Ivete Sangalo, como intérprete, o autor ganha, o editor ganha, os músicos executantes também ganham. Quando a música é registrada, existe esse cadastro, que é muito bem feito, e que você vê quem são os autores, os intérpretes e há de fato esse pagamento. Agora, muitos autores não recebem direitos autorais, às vezes, e reclamam, e muitas vezes sem razão, por quê? Porque você não pode culpar o Ecad, às vezes, por não pagar direitos autorais se a sua música não toca. A gente sabe que a música para ser executada hoje em uma emissora de rádio é difícil. Aqui na Bahia, você tem a Rádio Educadora que traz música dos próprios artistas locais, mas infelizmente, existe isso mesmo, do ‘jabá’, de se pagar para tocar. Não sou eu que estou dizendo, todos os artistas sabem disso, que existe preço tabelado, prelo fixo para tocar música. E obviamente que, se a música é executada, o autor vai receber os direitos autorais. Se a música não é executada… Muitas vezes o cara fez um sucesso nos anos 1990, ganhou muito dinheiro na época, mas não ganha mais hoje, por quê? Porque a música não toca mais e, se não toca, não há pagamento de direitos autorais. A culpa é do próprio acesso, da própria democratização das emissoras. Nos Estados Unidos houve uma proibição dessa prática, da ‘payola’, que a gente chama aqui de ‘jabá’. O rio corre para o mar, quem tem dinheiro e paga, há um retorno maior através de direitos de autor, infelizmente.