IA: disrupção e regulamentação
Por Isabel Amorim, superintendente do Ecad
Nos anos 50, os brasileiros conheceram a televisão, uma nova tecnologia que mudaria a oferta e o consumo de entretenimento e passou a ser objeto de desejo da população. Hoje, o aparelho está presente em cerca de 95% dos domicílios do país, segundo o IBGE. A TV provocou um certo medo inicial e preocupou, principalmente, a indústria do rádio, cuja extinção chegou a ser profetizada. No final da década de 90, fomos apresentados à internet, que, de forma menos “ameaçadora”, rapidamente se integrou à rotina das pessoas, assim como o smartphone poucos anos depois. Juntos, provocaram tamanha revolução que não imaginamos nossa vida cotidiana sem seu uso. Esses três momentos da história ocasionaram grandes mudanças comportamentais e sociais.
Hoje, estamos sendo confrontados com uma etapa disruptiva do processo evolutivo da humanidade com o surgimento da Inteligência Artificial. São muitas as análises produzidas, publicadas e discutidas diariamente sobre os efeitos positivos e negativos que a IA trará no curto, médio e longo prazo, dependendo do campo de sua possível utilização. É preciso considerar, também, o fato de ainda não termos ao certo condições extremamente objetivas de dimensionar sua influência sobre as nossas vidas, levando em conta, por exemplo, o impacto que essa tecnologia causará ao mundo do trabalho.
Até então, tínhamos a percepção de que as novas tecnologias que impactaram as nossas vidas consistiam uma “ameaça” tão somente às outras já existentes, condenando-as à obsolescência: televisão versus rádio; computador versus máquina de escrever; smartphones versus câmeras etc. O que vemos atualmente com a massificação da IA Generativa é seu uso para o desenvolvimento de conteúdos a partir de obras e produções protegidas por direito autoral, sem autorização prévia.
Esta violação aos direitos de propriedade intelectual afeta diretamente pessoas, obras e instituições, prejudicando autores e titulares e causando enorme perda para a indústria criativa. São CPFs e CNPJs que dependem daquele conteúdo, de sua autoria, para a sua sobrevivência. Além disso, a sociedade como um todo corre o sério risco de também ser prejudicada, a partir da produção de materiais noticiosos falsos e imagens e vídeos manipulados, gerando desinformação.
O tema foi motivo de carta enviada recentemente ao Senado Federal por diversas entidades representantes de setores culturais, musical, audiovisual, literário e de dramaturgia, incluindo o Ecad. Todos verdadeiramente preocupados em assegurar os diretos dos artistas com o avanço do processo tecnológico. O que propomos é a inclusão de dispositivos específicos no Projeto de Lei a respeito da criação de um Marco Legal da IA no Brasil, que hoje tramita no Poder Legislativo.
O mercado cultural e musical já passou por diversas transformações nas últimas décadas, especialmente na forma de consumir e produzir músicas: os mais jovens não devem sequer saber o que é um LP, um CD, um VHS ou mesmo um DVD, a depender da idade, mas foram tecnologias que apareceram como revolucionárias e hoje praticamente não existem. Mais recentemente, o streaming surgiu criando novos paradigmas e, ao mesmo tempo, oferecendo novas oportunidades para os criadores –– como uma nova forma de divulgar seu trabalho e como fonte de renda, batendo recordes ano após ano de execuções e de pagamento de direitos autorais, distribuídos pelo Ecad aos artistas. Hoje, as plataformas digitais, tanto de áudio quanto de vídeo, já respondem por um quarto de todo o direito autoral arrecadado e pago no Brasil. Por outro lado, os modelos generativos de IA permitem, por exemplo, a criação de versões falsas com o uso das obras originais.
Sou extremamente favorável às novidades e às mudanças, mas creio que precisamos discutir e refletir sobre a necessidade de estabelecermos um limite para o uso da tecnologia, de forma a não prejudicar o criador e a pujante indústria musical que temos no Brasil. Neste ambiente novo da IA, em que tudo ainda parece indefinido, enxergo o copo meio cheio, com possibilidades de uma nova ferramenta da qual todos possam aproveitar de forma positiva, respeitando as leis brasileiras e resguardando os direitos dos criadores musicais –– talvez o elo mais importante de toda a cadeia da indústria musical. Somente assim podemos garantir um mercado sustentável para todos.