Artigo publicado no jornal Hora do Povo pelo jornalista Carlos Lopes
O Cade, que deveria zelar pela concorrência e restringir monopólios privados e cartéis, há muito tornou-se um valhacouto dos monopólios e cartéis – contra os trabalhadores, o povo e o Brasil
A tentativa do Cade (sigla de um órgão chamado, impropriamente, Conselho Administrativo de Defesa Econômica) de inviabilizar a arrecadação de direitos autorais pelos artistas brasileiros, condenando o Ecad – e as associações de profissionais que formam este escritório de cobrança desses direitos – por suposta “formação de cartel”, é um escândalo despudorado, indecente e de uma corrupção tão evidente, que somente resta chamar a polícia para as devidas apurações. A decisão, inclusive, atropela circunstanciado parecer do procurador da República perante o Cade, Luiz Augusto Santos Lima, que opinou pelo arquivamento do processo administrativo.
O recurso contra os artistas ao Cade foi feito pela ABTA (Associação Brasileira de Televisão por Assinatura) – que não queria, e não quer, pagar direitos autorais aos músicos brasileiros. Esta ABTA é um cartel notório (e um cartel estrangeiro, apesar do nome), dos mais sabidos, reconhecidos, óbvios e desavergonhados entre os que operam no país.
Todo mundo sabe disso, até porque a ABTA é meramente a reunião da Telmex/AT&T (dona da NET e da Claro TV), Telefónica de España (dona da TVA e da TV Vivo) e da Sky, do sr. Murdoch, com a Motorola e meia dúzia de multinacionais “fabricantes de equipamentos voltados a TV por assinatura”. O resto – que, aliás, é muito pouco – não tem a menor importância.
Essas aves de rapina, como é de seu feitio, não querem pagar o que devem aos artistas. Assim, entraram no Cade, contra o Ecad e as associações de artistas.
O que faz o Cade? Condena os artistas, seu escritório de arrecadação (Ecad) e suas associações, por… formação de cartel, simplesmente porque estavam cobrando, coletivamente, o que o cartel das Tvs por assinatura estava devendo – e multou as entidades de artistas em, ao todo, R$ 38,2 milhões.
Que entidades são essas? As mais representativas e algumas das mais históricas organizações dos músicos: a Associação de Músicos Arranjadores e Regentes (Amar); a União Brasileira de Compositores (UBC); a Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (Sbacem); a Sociedade Brasileira de Administração e Proteção de Direitos Intelectuais (Socimpro); a Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais (Sicam); e a Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus).
Nos EUA, os sindicatos de trabalhadores foram frequentemente condenados por “formação de cartel”, devido a reivindicarem aumentos salariais. Segundo a sábia jurisprudência, somente sozinho um trabalhador podia pedir aumento ao patrão. Se o fizesse unindo-se aos colegas de trabalho (ou seja, através de um sindicato), aí era “formação de cartel”.
O Cade faz a mesma coisa e com uma impunidade que clama aos céus – que o digam os taxistas de Brasília, cujo sindicato foi multado em 1998; ou os sindicatos de vigilantes do Rio Grande do Sul (2003); ou pequenas empresas, como as reunidas na Associação das Autoescolas de Campinas, que em 2008 foi multada por organizar uma tabela com os custos mínimos dos serviços…
Da mesma forma, o Cade condenou por “formação de cartel” a Associação Médica Brasileira (AMB), porque esta estabeleceu uma tabela de preços mínimos dos procedimentos profissionais, para impedir que o cartel dos convênios e planos de saúde escalpelasse os médicos brasileiros.
Em suma, para o Cade, os trabalhadores “formam cartel” quando resistem aos cartéis.
Mas, quando se trata de enfrentar verdadeiros cartéis ou monopólios, a conversa é outra: houve, nos últimos 17 anos, nada menos que 7.819 “fusões ou aquisições”, que é dever do Cade analisar.
Entre elas: a da Brahma com a Antárctica; a do Itaú com o Unibanco; a aquisição da Cosan pela Shell; a da Vivo pela Telefónica; a venda, pela Ashmore Energy, da sua participação na Elektro para a Iberdrola; a fusão da Sadia com a Perdigão; a aquisição do Banco Real pelo Santander; a da Net pela Telmex/AT&T e da TVA pela Telefónica, ambas ilegais quando foram realizadas; e, claro, a da Kolynos do Brasil pela Colgate-Palmolive Company – o que fez esta última saltar de 27% para 79% de participação no mercado de dentifrícios.
Tudo isso foi aprovado pelo Cade, apesar da evidente monopolização do mercado – no máximo, houve medidas ridículas, como a substituição da marca Kolynos pela marca Sorriso, exatamente com a mesma embalagem e marketing de antes.
O Cade, que deveria zelar pela concorrência e restringir monopólios privados e cartéis, há muito tornou-se um valhacouto dos monopólios e cartéis – contra os trabalhadores, o povo e o Brasil.
É ridícula a argumentação de que os artistas, através de suas associações e do Ecad, não podem fixar preços para arrecadar seus direitos autorais – segundo um dos advogados do cartel das Tvs por assinatura “música não é tudo a mesma coisa” (como se eles quisessem pagar mais ao Chico Buarque do que ao Michel Teló – aliás, o risco aqui é acontecer o inverso).
Porém, sem fixar um preço único pelo conjunto dos direitos, para depois serem distribuídos de acordo com a frequência ou audiência da obra, como é possível cobrar? Como demonstrou o procurador Luiz Augusto Santos Lima, não existe outra forma dos direitos autorais serem cobrados coletivamente: “A opção associativa [para cobrar os direitos autorais] foi unificar em um repertório compartilhado todas as obras e direitos registrados, conferindo aos usuários uma licença única para a disponibilidade de sua execução de forma a se garantir a arrecadação e distribuição pelo ECAD. A fixação de preço uniforme em conjunto pelas associações é uma consequência imperiosa para a viabilidade do repertório compartilhado e sua licença única, bem como para a viabilidade da função legal do ECAD”.
É óbvio que, se não for assim, cada artista teria que negociar sozinho, individualmente, com as Tvs por assinatura, e com os demais monopólios do cartel dos meios de comunicação, o pagamento dos seus direitos autorais – imagine o leitor com que resultado.
A propósito, segundo a própria ABTA, o faturamento da TV por assinatura em 2012 foi R$ 17,4 bilhões, um aumento de 19,17% em relação a 2011, superando, pela primeira vez, o faturamento da TV aberta (R$ 14,1 bilhões). O Ecad está cobrando 2,55% do faturamento como direitos autorais dos músicos – compositores, arranjadores, intérpretes -, a mesma percentagem que é cobrada na TV aberta.
Mas, o Cade pretende estabelecer “proibição de se discutir preços em assembleia geral”. Essa é uma proibição manifestamente ilegal diante da Lei de Direitos Autorais (LDA), e, mais ainda, diante da Constituição, porque equivale a proibir os trabalhadores de discutirem em assembleia as suas reivindicações salariais. Evidentemente, os artistas têm que ser pagos por seu trabalho. Porque não podem discutir coletivamente o preço daquilo que produzem? Aqui, não estamos mais à beira do fascismo – a fronteira já foi ultrapassada.
O Cade também não tem autoridade para determinar que “no prazo de seis meses deve ser reformulado o sistema de gestão coletiva dos direitos autorais” – essa é uma questão que diz respeito ao Legislativo, isto é, uma questão política e jurídica, o que está completamente fora da órbita do Cade, um órgão meramente administrativo.
Quanto à história de que o Ecad tem “monopólio” da arrecadação, trata-se de puro cinismo diante da exploração de três ou quatro monopólios da TV paga (a Vivendi, dona da GVT, não é associada à ABTA). Propomos que o Cade condene a Receita Federal por monopólio na arrecadação dos impostos.
Imagine o leitor a existência de dois, três, seis ou cinquenta escritórios arrecadadores. Que beleza, para esses caloteiros monopolistas, discutirem eternamente no Cade ou na Justiça se devem pagar os direitos autorais a tal ou qual escritório – ou até fundarem alguns escritórios, para que os artistas só recebam o que eles querem, através do escritório deles…