Lei americana permitirá a artistas e escritores retomar direitos autorais em 2013
RIO – No que diz respeito ao delicado terreno do entretenimento digital, podemos apostar que o fim do mundo não será em 2012, como quer o filme de Roland Emmerich, mas em 2013. A partir de então, as últimas três décadas da indústria cultural como a conhecemos poderão ir pelos ares graças à letra fria da lei – pelo menos a dos EUA. Isso porque, em 1976, o Congresso americano aprovou o Copyright Act, especificando que, se um compositor ou escritor vendeu os direitos de suas obras a uma gravadora ou editora antes de 1978, tem o direito de retomá-los 56 anos depois da venda (o que já permite a retomada, este ano, de quem gravou ou escreveu algo e cedeu os direitos até 1953, lá).
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Pode ser um golpe duro para a indústria musical, que tem recorrido a tudo para se manter em pé – de ringtones de celulares a investimentos em turnês e shows, sem falar dos jogos do tipo Guitar Hero e Rock Band. E as editoras não ficam atrás, a vingar a onda iniciada pelo e-reader Kindle, que já tem como concorrentes Sony Reader, Nook (da Barnes & Noble) e, recentemente, até o Intel Reader, capaz de converter textos impressos em forma digital. E sem falar de redes P2P, blogs e torrents com toneladas de ofertas de downloads, projetos como Google Editions e assim por diante.
Tudo isso está registrado na seção 304 da lei. Já na seção 203 está escrito que essa mesma retomada de direitos pode ser levada a cabo 35 anos depois da venda, se ela ocorreu depois de 1º de janeiro de 1978.
Esses 35 anos da última provisão citada vencem exatamente a partir de 2013, quando os artistas podem requerer de volta seu copyright e revendê-lo diretamente – pela internet… – sem a necessidade de intermediários.
Ainda há muito ranger de dentes, mas o desfecho da história pode não ser negativo. Pelo contrário, afirma Renato Opice Blum, advogado brasileiro especializado em direito digital .
– A retomada dos direitos autorais certamente vai mexer com o mercado, gerar novas negociações e contratos e levar a um melhor aproveitamento das novas tecnologias – diz ele.
Existe um outro aspecto dessa "bomba-relógio" jurídica, que se aplica também ao Brasil, segundo o advogado e presidente do iCommons Ronaldo Lemos.
Nos contratos de artistas e autores brasileiros com as empresas, a questão é diferente da que está acontecendo lá fora.
– Nossa bomba-relógio é outra. Ela consiste no fato de que sempre que um artistas cede suas músicas para a editora, ele autoriza apenas o uso nas tecnologias existentes no momento da cessão – explica o presidente do iCommons. – Em outras palavras, muitos artistas que fizeram contratos nos anos 80 e até nos anos 90 não podem ter suas obras exploradas em ringtones de celular, internet e outras formas de utilização inexistentes até então.
Nos últimos tempos, encarniçadas batalhas judiciais pelos direitos autorais têm sido travadas nos EUA. Os herdeiros do escritor John Steinbeck (dos clássicos "As vinhas da ira", "Sobre ratos e homens"), por exemplo, ganharam em 2006 e perderam em 2008 os direitos sobre seus livros, que ficaram com a Penguin Books. Já em agosto deste ano, os herdeiros de Jerry Siegel, um dos criadores do Super-Homem, ganharam os direitos sobre as primeiras histórias publicadas do herói, numa disputa com a Warner Brothers e a DC Comics.
Segundo o site Law.com, especializado em Direito, esses processos vão ficar ainda mais beligerantes a partir de 2013. De acordo com o site, advogados a serviço de artistas e grupos como Eagles, Journey, Barbra Streisand e outros já estão em campo pesquisando o estado de contratos antigos de seus clientes.
– Algo parecido está acontecendo aqui no Brasil. Artistas como Gilberto Gil, Zé Ramalho e Chico Buarque estão pleiteando nos tribunais interpretações para retomar os direitos que cederam às editoras – lembra Ronaldo. – O fundamento é diferente dos EUA, não por conta de tempo, mas de outras peculiaridades da lei brasileira. A decisão do Gil saiu há alguns anos e ele conseguiu reaver na Justiça todos os seus direitos. O Chico e o Zé Ramalho ainda não têm decisões finais.
Richard Stallman, pai do movimento do software livre e um dos ativistas mais ferrenhos contra o estado atual do copyright, diz num ensaio que a própria concepção dos direitos autorais levou a distorções.
– O sistema de copyright provê privilégios e benefícios a autores e editores, para incentivá-los a escrever mais e publicar mais, em benefício do progresso e do público – diz Stallman, que aponta o erro de dar poder excessivo aos editores por longos períodos. – Mas, se o copyright é uma barganha feita em nome do público, deveria servir ao interesse deste acima de tudo. Eu jamais comprarei um desses e-books encriptados e restritos [leia-se Kindle, por exemplo], e espero que vocês os rejeitem também.
É o caso de esperar para ver o que os artistas farão quando lhes couberem a faca e o queijo na mão. Se a indústria deixar. Em 1999, tentou-se uma emenda ao Ato de 1976, que não vingou. Uma alternativa, ao menos para a indústria musical, seria gravar novas versões de velhas músicas, para criar novos prazos de direitos autorais, e deixar os antigos com os artistas.
Por ora, fica um bom exemplo do grande mestre Ray Charles, que negociou seu contrato com a ABC Records e pediu que os masters de suas gravações pertençam a ele. A reação do dono da gravadora foi algo como "Mas ninguém faz isso…". Entretanto, o cantor conseguiu: o acordo, de novembro de 1959, deu-lhe o direito de reter todos os seus masters após a conclusão do contrato, garantindo-lhe segurança financeira. Um acordo mais liberal do que muitos artistas pop tinham então – e ainda hoje!